"Não há grandes poetas nem grandes poemas; há palavras que nos agarram no momento certo. só isso."

Gil T. Sousa


quinta-feira, 21 de maio de 2009

Era uma vez...

Era uma vez uma rainha com chapéu de cisne. Era uma vez um rei com cara de peixe.
Que tinham nascido de um traço de carvão. E viviam felizes na folha quadriculada do coração.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Vendedor de flores

Dez da manha e a porta ainda estava fechada. Todos que por lá passavam encaixavam a hipótese de ter adormecido, mas acham muito estranho. Três da tarde e o cantinho das flores ainda tinha a porta trancada com as persianas fechadas.

Sua loja, não tinha hora de abertura e de fecho. Vendia as suas flores por amor e não por dinheiro. Por isso, acordava cedo para viajar até o seu cantinho. Vendia suas flores para cobrir as ruas de pregões de amor eterno.
Era um vendedor de flores, que sabia ao certo corresponder a cada espinho pregado no coração de alguma alma desesperada para com a sua flor pedir um perdão. Correspondia aos homens apaixonados, que iam em busca da melhor flor, a mais forte e esplêndida para dar a sua parceira num dia especial. Vivia numa zona piscatória, muitas já foram as vezes que floriu corações de amargura de esposas que sofreram com a morte dos seus queridos pescadores no alto mar. Sabia, sempre qual a flor que correspondia a cada pessoa mesmo antes de ela o dizer. Gostava do que fazia, e era muitas as vezes que ensinava os seus filhos a tratar de cada pétala de flor. “Um vendedor de flores a ensinar seus filhos a escolher seus amores”.
Quando sentia que suas flores necessitavam de carinho, fechava sua loja, sem se quer olhar para o relogio. Dedicava seu tempo a elas, retirava as folhas secas , regava com todo o seu amor e delicadeza. As flores são frágeis, sensiveis, sempre disse aos seus filhos que as flores são belas concluindo que belas são as coisas frágeis.
Sentado na sua candeira de baloiço, contemplando as flores relembrava uma tarde de inverno, à muito tempo atrás. Ainda era novo de carreira, nem tinha um cantinho como hoje tinha, por isso vendia seus ramos pela rua. Nessa tarde fria, encostou-se a uma árvore. O dia não tinha sido muito bom e já pensava ir para sua casa. Quando do outro lado da rua viu uma mulher a acenar. Quando ele a percebeu, ela mudou de gesto, e apontava para ele. O vendedor de flores olhou-se. Era o ramo. Ele mostrou-o, erguido em frente de si. Isso mesmo, ela confirmava com um sorriso nos lábios e nos olhos. O próximo gesto viera depois do sorriso. Ela coçava o indicador com o polegar de uma das mãos. Dinheiro. Ele olhou as flores. Olhou o céu e reflectiu, negou. Negou, com um gesto firmo do dedo indicador. E ergueu de novo o ramo em direcção à mulher. Não entendeu, ergueu os ombros e as palmas da mão. Quando o sinal vermelho deu lugar ao verde para os piões, ela deslocou-se ao vendedor. Encontraram-se os dois no meio da calçada. Não vende? Não posso, não são minhas. Ah. Olhava decepcionada. São suas. Ela colheu-as no seu peito e agradeceu. Nunca mais viu esta mulher, mas sabia que um dia a tinha feito feliz e isso alegra seu peito de flores.
Casou, passado muito tempo.
E hoje, estava casado à vinte e cinco anos. Na sua loja, enquanto sentado e a relembrar aquele dia tão feliz reconheceu gestos familiares, olhares comuns e não acreditou. Fechou a sua loja e correu até sua mulher e perguntou se algum dia um vendedor lhe tinha dado um ramo. Ela confirmou, com o olhar.

domingo, 10 de maio de 2009

Marinheiro dos sonhos

Na noite adormecida ela dançava como bailarina. A melodia do vento enchia o seu corpo, sentia-se bailarina sem nunca ter bailado ao som de um acorde. Quando o seu corpo não aguentava mais nenhuma rodada no vazio, encostava-se á parede fria da sua sala. Imaginava o seu marinheiro de sonhos a chegar de uma noite fria e inquieta. Teria ela medo de sozinha se deitar na sua cama. Nunca perdeu aquele medo de pequena, encontrar o bicho papão debaixo da cama. Então dançava pela escuridão da noite a dentro à espera que a luz da madrugada deixasse visível cada passo cada gesto, recolhendo-se então para sua cama. Sempre acreditou que a luz da noite trazia o bicho papão para debaixo da cama e com o raiar do dia ele desaparecia.
E encostada à parede fria ela continuava a pensar no seu marinheiro de sonhos. Não se importava das suas mãos ásperas de tanto trabalhar ou dos rasgões de anzóis ancorados na pele queimada de tanto sol apanhar.
Nos primeiros raios da madrugada recolhia-se então para os seus lençóis cor do mar e com a sua almofada acreditava que um dia nessa mesma almofada iria encontrar um pouco de sal da noite passada com o seu marinheiro de sonhos.