"Não há grandes poetas nem grandes poemas; há palavras que nos agarram no momento certo. só isso."

Gil T. Sousa


sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

«Mendigo dos meus olhos, porque tens medos, revela-me os teus segredos e não escondas essa face de mistério...»

Costumava-o encontrar na rua do costume, quando os ponteiros do meu relógio se juntavam e era essa a hora que dividia o dia entre manhã e tarde. Eu ficava a vê-lo vaguear pela rua, observava o supermercado e ao mesmo tempo o caixote do lixo. Chamavam-no morador de rua, mendigo e até sem abrigo. Eu gostava de o tratar por cidadão. Olhavam-no como se fosse um corpo estranho no caminho. E com todos aqueles olhares intimidadores da sociedade até eu ficava amedrontada, que vontade tinha de expressar a minha opinião. Um cidadão como os outros, com os seus direitos, direito de utilizar os espaços públicos, de deambular nas ruas, de se sentar nos parques, de abordar e falar aos passeantes, ou de se sentar tranquilamente num estabelecimento para tomar um café.
Ficava a vê-lo desaparecer rua abaixo, a desejar que existisse alguma alma, em alguma parte do mundo, capaz de o consolar.
Senti o meu corpo necessitar de alimento e não hesitei em entrar no supermercado. Toneladas de alimento estavam ao meu dispor e outras mais dentro do armazém à espera de um lugar na prateleira. Com tanta comida à nossa volta parece mesmo impossível que exista pessoas a morrer à fome, mas esquecemo-nos que para entrar naquele supermercado necessitamos de uma senha a que chamamos dinheiro.
A fome passou-me e reparei que não se tratava de fome mas uma vontade de comer. Sentei-me num banco do jardim e reparei no hospital que estava bem ao longe. Perguntei-me a mim mesma o que me aconteceria se partisse uma perna. Alguém iria chamar uma ambulância, que me transportaria até ao hospital onde seria tratada por um médico que estudou toda a sua vida para tratar corpos partidos. Seriam simpáticos comigo e se tivesse que ficar internada seria visitada pela minha família. Agora, porque é que as pessoas com problemas cerebrais vão ser tratadas de maneira diferente. As causas dos sem abrigo são disfunções cerebrais. Quer se trate de um caso de maníaco depressão, esquizofrenia, alcoolismo, comportamento anti-social, falta de gestão financeira, o problema está dentro do cérebro da pessoa. Ajudar a recuperar este mau funcionamento do cérebro levaria a uma diminuição de ‘moradores de rua’.
Mas não fazemos isso. Quando vemos um ‘mendigo’ o que acabamos por fazer? Lançar olhares intimidadores?


Perdi-lhe o rasto no dia que esta calçada deixou de me pregar partidas.
"Renasces nos becos, nas ruas
Alimentas-te da solidão e da esperança
Teus sonhos são escassos
Tua vida é inútil, aos olhos dos que não te entendem
Tua imagem reflecte-se
Nos rios da cidade
Nas sombras das esquinas e
Nos bancos solitários"

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